sexta-feira, 25 de novembro de 2011

mordaça entre os dentes
















"Eram quatro e meia da tarde quando Amaranta Úrsula saiu do banho. Aureliano a viu passar diante do seu quarto, com um robe de pregas delicadas e uma toalha enrolada na cabeça como um turbante. Seguiu-a quase na ponta dos pés, cambaleando da bebedeira, e entrou no quarto nupcial no momento em que ela abria o robe e tornava a fechar espantada. Fez um gesto silencioso para o quarto contíguo, cuja porta estava entreaberta, e onde Aureliano sabia que Gastón começava a escrever uma carta.
- Vá embora - disse sem voz.
Aureliano sorriu, levantou-a pela cintura com as duas mãos, como um vaso de begônias, e jogou-a de frente na cama. Com um puxão brutal, despojou-a do roupão de banho antes de que ela tivesse tempo de impedi-lo e se aproximou do abismo de uma nudez recém-lavada que não tinha um matiz de pele, uma região de pêlos, um sinal escondido que ele não tivesse imaginado nas trevas de outros quartos. Amaranta Úrsula se defendia sinceramente, com astúcia de fêmea sábia, esquivando o escorregadio e flexível e cheiroso corpo de doninha, enquanto lhe tentava destroncar-lhe os rins com os joelhos e picava-lhe a cara com as unhas, mas sem que ele ou ela emitissem um suspiro que não se pudesse confundir com a respiração de alguém que contemplasse o econômico crepúsculo de abril pela janela aberta. Era uma luta feroz, uma batalha de morte, que entretanto parecia desprovida de qualquer violência, porque estava feita de agressões contorcidas e evasivas espectrais, lentas, cautelosas, solenes, de modo que entre uma e outra havia tempo para que voltassem a florescer as petúnias e Gastón se esquecesse dos seus sonhos de aeronauta no quarto vizinho, como se fossem dois amantes inimigos tentando se reconciliar no fundo de um lago diáfano. No fragor do encarniçado e cerimonioso forcejar, Amaranta Úrsula compreendeu que a meticulosidade do seu silêncio era tão irracional que poderia despertar as suspeitas do marido contíguo, muito mais do que os estrépitos de guerra que tentavam evitar. Então começou a rir com os lábios fechados, sem renunciar à luta, mas se defendendo com mordidas falsas e desesquivando o corpo pouco a pouco, até que ambos tiveram consciência de ser ao mesmo tempo adversários e cúmplices, e a briga degenerou numa excitação convencional e as agressões se tornaram carícias. De repente, quase brincando, como uma travessura a mais, Amaranta Úrsula descuidou da defesa e, quando tentou reagir, assustada do que ela mesma mesma tinha feito possível, já era tarde demais. Uma comoção descomunal imobilizou-a no seu centro de gravidade, plantou-a no lugar, e a sua vontade defensiva foi demolida pela ansiedade irresistível de descobrir o que eram os apitos alaranjados e os balões invisíveis que a esperavam do outro lado da morte. Mal teve tempo de esticar a mão e procurar às cegas a toalha e meter uma mordaça entre os dentes, para que não saíssem os gemidos de gata que já estavam rasgando as suas entranhas".


trecho de Cem anos de solidão, Gabriel Garcia Marques

terça-feira, 22 de novembro de 2011

felicidade











"Felicidade ? Felicidade é fazer amor por amor. É o coração quase explodindo de tanto palpitar quando um olhar único pousa em sua boca, quando uma mão deixa um pouco de seu suor atrás de seu joelho esquerdo. É a saliva do ser amado que lhe escorre na garganta, doce, transparente. É o pescoço que se alonga, desfaz seus nós e seus cansaços, vira o infinito porque uma língua o percorre em toda a sua extensão. É o lóbulo da orelha que pulsa como um quadril. São as costas que deliram e inventam sons e arrepios para dizer "eu te amo".

sábado, 19 de novembro de 2011

bucetinhas vestidas e peladas














Trópico de Cancer fragmento 34








" (...) Alguns meses mais tarde. O mesmo hotel, o mesmo quarto. Olhamos para o pátio lá fora, onde há bicicletas estacionadas, e lá em cima, abaixo do sótão, fica o quartinho onde um jovem sabido tocava o fonógrafo o dia inteiro e repetia coisinhas engraçadas com o máximo de sua voz. Digo "nós", mas estou exagerando, pois Mona foi-se embora há muito tempo e é só hoje que vou encontrar-me com ela na Gare St. Lazare. Ao anoitecer, lá estou com o rosto apertado contra as grades, mas não há Mona alguma, e leio e releio o cabograma, mas de nada adianta. Volto para o Quartier e apesar de tudo faço uma copiosa refeição. Caminhando ao léu diante do Dôme um pouco mais tarde, vejo de repente um rosto pálido e pesado, com olhos ardentes - e o vestidinho de veludo que sempre adorei porque embaixo do veludo macio sempre houve uns seios quentes e pernas de mármore, frias, firmes, musculares. Ela se ergue do mar de rostos e abraça-me, abraça-me apaixonadamente - milhares de olhos, narizes, garrafas, janelas, bolsas, pires, tudo nos fitando e nós, um nos braços do outro, esquecidos. Sento-me ao seu lado e ela fala - uma torrente de palavras. Notas selvagens e consumptivas de histeria, perversão, lepra. Não ouço uma só palavra porque ela é bela, eu a amo e agora estou feliz e desejando morrer."


Henry Miller