sábado, 18 de outubro de 2008
a historia d O
Que O tivesse podido hesitar em falar com Jacqueline sobre o que René chamava com justiça sua verdadeira condição, era o que não compreendia mais. Anne-Marie bem lhe dissera que estaria mudada quando saísse de sua casa. Nunca teria pensado que pudesse ser a esse ponto. Jacqueline tendo voltado, mais radiosa e fresca do que nunca, pareceu-lhe natural de agora em diante não se esconder para tomar banho ou vestir-se, mais do que quando estava sozinha. No entanto, Jacqueline tinha tão pouco interesse pelo que não era ela mesma que, dois dias depois de sua chegada, tendo entrado por acaso no banheiro no momento em que O saía do banho, foi necessário que esta fizesse tinir os ferros de seu ventre contra o esmalte da banheira, para que o barulho insólito atraísse sua atenção. Virou a cabeça e viu ao mesmo tempo o disco pendurado entre as pernas de O, e as marcas que riscavam suas coxas e seus seios. “O que você tem?”, disse. “Foi Sir Stephen”, respondeu O. E acrescentou como uma coisa natural: “René tinha me dado a ele, e ele me fez ferrar com seu nome. Olhe”. E, enxugando-se com seu roupão de banho, aproximou-se de Jacqueline que, surpreendida, sentara-se no banquinho laqueado, perto o suficiente para que pudesse segurar o disco na mão e ler a inscrição: depois, deixando cair seu roupão, O virou-se, mostrou com a mão o S e o H que se afundavam em suas nádegas e disse: “Também me fez marcar com suas iniciais. O resto são golpes de chibata. Ele próprio me chicoteia, mas também manda sua criada negra me chicotear”. Jacqueline olhava O sem poder pronunciar uma palavra. O pôs-se a rir e quis beijá-la. Mas Jacqueline repeliu-a apavorada e refugiou-se no quarto. O terminou tranqüilamente de se secar, perfumou-se, escovou os cabelos. Pôs sua cinta-liga, suas meias, seus chinelos, e quando por sua vez abriu a porta, encontrou no espelho o olhar de Jacqueline que se penteava diante da penteadeira, sem ter consciência do que fazia. “Aperte minha cinta”, disse. “Você representa bem o papel da admirada. René está apaixonado por você; então, não lhe disse nada?” “Não compreendo”, disse Jacqueline. E confessando imediatamente o que mais a surpreendia: “Você parece estar orgulhosa, não compreendo”. “Quando René a levar a Roissy compreenderá. Já começou a dormir com ele?” Um fluxo de sangue invadiu o rosto de Jacqueline que fez não com a cabeça com tanta má-fé que O mais uma vez deu uma risada. ”Está mentindo, minha querida, mas você é boba. Tem todo o direito de dormir com ele. E isto não é motivo para me repelir. Deixe-me acariciá-la e contarei sobre Roissy”. Jacqueline temera uma violenta cena de ciúmes de O, e cedeu por alívio, por curiosidade, para obter de O explicações, ou simplesmente porque amava a paciência, a lentidão e a paixão com que O a acariciava? Cedeu. “Conte”, disse depois a O. “Sim”, disse O. “Mas antes beije-me os bicos dos seios. Já está na hora de se habituar, se quiser servir em algo a René.” Jacqueline obedeceu, e tão bem, que fez O gemer. “Conte”, disse mais uma vez.
O relato de O, por mais fiel e claro que fosse, e apesar da prova material que ela própria constituía, pareceu delirante a Jacqueline. “Vai voltar lá em setembro?”, disse. “Quando voltarmos do Midi”, disse O. “Eu a levarei, ou René a levará”. “De ver eu gostaria”, continuou Jacqueline, “mas só de ver.” “Estou certa de que é possível”, disse O, estava convencida do contrário, mas pensando que, se pudesse, ela, persuadir Jacqueline a ultrapassar as grades de Roissy, Sir Stephen ser-lhe-ia grato — e que logo haveria muitos criados, correntes e chicotes para ensinarem a Jacqueline a aquiescência. Já sabia que na vila que Sir Stephen tinha alugado perto de Cannes, onde deveria passar o mês de agosto com René, Jacqueline e ela, além da irmã menor de Jacqueline, que esta tinha pedido permissão para levar — não que fizesse questão, mas porque sua mãe a atormentara para fazer com que O consentisse—, sabia que o quarto que ocuparia, onde Jacqueline não poderia recusar ir pelo menos fazer a sesta com ela quando René não estivesse, estaria separado do quarto de Sir Stephen por uma parede que parecia compacta mas que não o era, e cuja decoração, dando a ilusão ótica de uma clarabóia sobre uma treliça, permitia, retirando-se um painel, ver e escutar tão bem como se estivesse de pé ao lado da cama. Jacqueline estaria entregue aos olhares de Sir Stephen quando O a acariciasse, e saberia disso tarde demais para se defender. Era-lhe doce pensar que entregaria Jacqueline por traição, pois sentia-se insultada ao ver que Jacqueline desprezava esta condição de escrava marcada e chicoteada da qual estava orgulhosa.
O nunca tinha ido ao Midi. O céu azul e igual, o mar que mal se movia, os pinheiros imóveis sob o sol alto, tudo lhe pareceu mineral e hostil. “Não são árvores de verdade”, dizia tristemente diante dos bosques perfumados repletos de cistos e de medronheiros, onde todas as pedras e até os liquens eram quentes sob a mão. “O mar não tem cheiro de mar”, dizia ainda. Recriminava-o por lançar apenas algas ruins, raras e amareladas que pareciam excrementos, por ser excessivamente azul, por lamber a praia sempre no mesmo lugar. Mas, no jardim da vila, que era uma velha fazenda reformada, encontrava-se longe do mar. Grandes muros à direita e à esquerda protegiam dos vizinhos; a ala dos empregados dava para o pátio da entrada, na outra fachada, e a fachada que dava para o jardim, onde o quarto de O abria-se inteiro sobre um terraço no primeiro andar, estava exposta ao leste. O cimo de grandes loureiros negros alcançava as telhas ocas acavaladas que serviam de parapeito ao terraço; um ripado de bambu protegia-o do sol do meio-dia e o ladrilho vermelho que cobria o chão era o mesmo que o do quarto. As paredes do quarto eram caiadas de branco, com exceção da parede que separava o quarto de O do de Sir Stephen, e era a parede de uma grande alcova delimitada por um arco e separada do resto do quarto por uma espécie de barreira semelhante à rampa de uma escada, com balaústres de madeira torneada. Grossos tapetes brancos de algodão cobriam os ladrilhos, as cortinas eram de tecido amarelo e branco. Havia duas poltronas cobertas com o mesmo tecido, e colchões cambojianos azuis, dobrados de três vezes como único mobiliário, uma cômoda bojuda em nogueira, muito bonita, da época Regência, e uma mesa rústica, comprida e estreita, em madeira clara, encerada como um espelho. O guardava suas roupas num roupeiro. A parte superior da cômoda servia-lhe de penteadeira. Tinham acomodado a pequena Natalie bem perto do quarto de O, e pela manhã, quando sabia que O tomava seu banho de sol no terraço, Natalie vinha encontrá-la e estender-se ao seu lado. Era uma menina muito branca, roliça e no entanto delicada, com os olhos puxados como os de sua irmã, mas negros e brilhantes, o que lhe dava um aspecto chinês. Seus cabelos negros eram cortados retos acima da nuca. Tinha pequenos seios firmes e vibrantes e ancas infantis que começavam a se arredondar. Também tinha visto O de surpresa, quando entrou correndo no terraço onde pensava encontrar sua irmã e onde O se encontrava sozinha, deitada de bruços sobre uma esteira cambojiana. Mas o que revoltara Jacqueline, transtornou-a de desejo e inveja; interrogou sua irmã. As respostas que Jacqueline achou que iam revoltá-la ao contar-lhe o que a própria O tinha-lhe contado não mudaram em nada o sentimento de Natalie, pelo contrário. Tinha se apaixonado por O. Conseguiu calar-se mais de uma semana, mas, depois, no fim de uma tarde de domingo, deu um jeito para encontra-se a sós com O.
Fizera menos calor do que de costume. René, que tinha nadado durante uma parte da manhã, dormia sobre o divã de um cômodo fresco no andar térreo. Jacqueline, irritada por ver que ele preferia dormir, tinha ido encontrar O na sua alcova. O mar e o sol já a tinham bronzeado bastante: seus cabelos, suas sobrancelhas, seus cílios, seus pêlos sob o ventre e em suas axilas pareciam pulverizados de prata, e como não usava nenhuma pintura sua boca era do mesmo rosa que a carne rosa no fundo de seu ventre. Para que Sir Stephen — cuja presença invisível O achava que, no lugar de Jacqueline, teria pressentido, adivinhado, percebido — pudesse vê-la em detalhe, O teve o cuidado, por diversas vezes, de dobrar suas pernas mantendo-as abertas em plena luz: tinha acendido a lâmpada da cabeceira. As venezianas estavam puxadas, o quarto quase escuro apesar dos raios de claridade que passavam através das madeiras mal ajustadas. Jacqueline gemeu por mais de uma hora sob as carícias de O e por fim, com os seios levantados, os braços jogados para trás, agarrando-se com as duas mãos às barras de madeira que formavam a cabeceira da cama à italiana, começou a gritar quando O, mantendo afastados os lóbulos orlados de pêlos pálidos, pôs-se a morder lentamente a aresta de carne onde se reuniam, entre as coxas, os finos e delicados pequenos lábios. O sentiu-a endurecida e ardente sob sua língua, e a fez gritar sem trégua, até quando se distendeu de uma só vez, com as juntas quebradas, molhada de prazer. Mandou-a depois para seu quarto, onde dormiu. Encontrava-se desperta e pronta quando, às cinco horas, René veio buscá-la para irem ao mar com Natalie, num pequeno barco a vela, como tinham se habituado a fazer; no final da tarde havia alguma brisa. “Onde está Natalie?”, disse René. Natalie não estava em seu quarto, nem na casa. Procuraram-na no jardim. René foi até o pequeno bosque de carvalhos que se seguia ao jardim; ninguém respondeu. “Talvez já esteja no ancoradouro”, disse René, “ou no barco” Partiram sem chamar mais. Foi então que O, estendida em sua cambojiana, no terraço, avistou, através das telhas da balaustrada, Natalie que corria para a casa. Levantou-se, vestiu seu roupão — estava nua por causa do calor — e amarrava o cinturão quando Natalie entrou como uma fúria e jogou-se sobre ela. “Ela partiu, enfim partiu”, gritava “Eu a escutei, O, eu escutei vocês duas, escutei na porta. Você a beija, você a acaricia. Por que não me acaricia, por que não me beija? É por que eu sou escura e não sou bonita? Ela não a ama, O, e eu a amo”. E explodiu em soluços. “Vamos, calma” , disse O. Levou a menina para uma poltrona, pegou um grande lenço na sua cômoda (era um lenço de Sir Stephen) e, quando os soluços de Natalie se acalmaram um pouco, enxugou seu rosto. Natalie pediu-lhe perdão, beijando suas mãos. “Mesmo se não quiser me beijar, O, deixe-me ficar perto de você. Deixe-me ficar perto de você todo o tempo. Se não gosta de me beijar, mas se lhe diverte me bater, pode me bater, mas não me mande embora” “Cale-se, Natalie, você não sabe o que está dizendo”, murmurou O baixinho. A pequena, muito baixo também e escorregando para os joelhos de O, que abraçou, respondeu: “Sei sim, sei muito bem. Numa dessas manhãs eu a vi no terraço. Vi as iniciais e vi que você tem grandes marcas azuladas. E Jacqueline me contou.” “Contou o quê?” “Onde você esteve e o que lhe fizeram.” “Ela falou de Roissy ?” “E também falou que você esteve lá, que você era...” “Que eu era?” “Que você usa anéis de ferro” ”Sim”, disse O, “e depois?” “E depois que Sir Stephen a chicoteia todos os dias” “Sim”, disse ainda O, “e agora ele já vai chegar. Vai embora, Natalie”. Natalie, sem se mexer, levantou a cabeça para O, e O encontrou seu olhar cheio de adoração “Ensine-me, O, eu lhe suplico, queria ser como você. Prometa me levar quando voltar lá onde Jacqueline me contou.” “Você é muito criança”, disse O. “Não, não sou muito criança, tenho mais de quinze anos”, gritou, furiosa, “não sou criança demais, pergunte a Sir Stephen”, repetiu, pois ele entrava.
Natalie conseguiu permissão para ficar perto de O e a promessa de que seria levada a Roissy. Mas Sir Stephen proibiu a O ensinar-lhe qualquer carícia, beijá-la, mesmo que na boca, e deixar-se beijar por ela. Achava que deveria chegar em Roissy sem ter sido tocada por mãos ou lábios de quem quer que fosse. Por ouro lado exigiu, já que não queria deixar O, que não a deixasse em nenhum instante, que visse tanto O acariciar Jacqueline, como acariciar a ele próprio e entregar-se a ele, assim como ser chicoteada por ele ou pelas varas da velha Norah. Os beijos com que O cobria sua irmã, a boca de O sobre a boca de sua irmã, fizeram Natalie tremer de ciúmes e de ódio. Mas encolhida no tapete da alcova aos pés da cama de O como a pequena Dinazarde ao pé da cama de Sherazade, viu todas as vezes O, amarrada à balaustrada de madeira, contorce-se sob a chibata, O de joelhos receber humildemente na boca o espesso sexo endurecido de Sir Stephen, O prosternada oferecer-lhe o caminho de suas nádegas, abrindo-as com as próprias mãos, sem outros sentimentos que a admiração, a impaciência e o desejo.
Talvez O tivesse contado demais com a indiferença e ao mesmo tempo com a sensualidade de Jacqueline, talvez Jacqueline tenha considerado ingenuamente que fosse perigoso para ela, com relação à René, entregar-se tanto a O, o certo é que parou de repente. Nessa mesma época, parecia que mantinha René, com quem passava quase todas as suas noites e os dias, como à distância. Nunca tinha tido com ele a atitude de uma apaixonada. Olhava-o friamente e, quando lhe sorria, o sorriso não ia até os olhos. Admitindo-se que se entregasse a ele com tanto abandono como se entregava a O, o que era improvável, O não podia impedir-se de acreditar que este abandono não comprometia muito Jacqueline, enquanto se podia perceber que René estava perdido de desejo diante dela, paralisado por um amor que até então desconhecia, um amor inquieto, inseguro de retorno, e que teme desagradar. Vivia e dormia na mesma casa que Sir Stephen, na mesma casa que O, almoçava, jantava, saía e passeava com Sir Stephen, com O, falava com eles: mas não os via e não os ouvia. Via, ouvia e falava, através deles, além deles; e sem cessar, num esforço mudo e estafante, semelhante aos esforços que se fazem nos sonhos para saltar no trem que parte, para se segurar no parapeito da ponte que desmorona, tentava atingir a razão de ser, a verdade de Jacqueline que deveria existir no interior de sua pele dourada, como sob a porcelana, o mecanismo que faz as bonecas chorarem. “Chegou afinal”, pensava O, “chegou afinal o dia que tanto temia, quando seria para René uma sombra numa vida passada. E nem sequer estou triste, só me dá pena, e posso vê-lo todos os dias sem ficar ofendida por não me desejar mais, sem amargura, sem saudades. No entanto, há apenas algumas semanas corria a suplicar-lhe que me dissesse que me amava. É isso o amor? Tão leve, tão facilmente consolado? Nem mesmo consolado: sou feliz. Bastava então que me tivesse dado a Sir Stephen para que me desligasse dele, e para que nascesse entre novos braços, tão facilmente para um novo amor?” Mas também, o que era René, em comparação com Sir Stephen? Corda de feno, amarra de palha, bala de cortiça, isso que simbolizavam os laços verdadeiros com os quais a tinha ligado para tão depressa renunciar. Mas que repouso, que delícia o anel de ferro que fura a carne e que pesa para sempre, a marca que nunca se apagará, a mão de um senhor que a deita numa cama de rocha, o amor de um senhor que sabe apropriar-se sem piedade daquilo que ama. E O pensava que, afinal, só tinha amado René para aprender o amor e saber dar-se melhor, escrava e feliz, a Sir Stephen. Mas ao ver René, que com ela tinha sido tão livre — e tinha-o amado por sua liberdade — caminhar como entrevado, como se tivesse as pernas presas na água e nos caniços de um lago que parece imóvel, mas cuja corrente passa nas camadas profundas, provocava o ódio de O contra Jacqueline. René o teria adivinhado? O, imprudente, tê-lo-ia deixado perceber? Cometeu um erro. Uma tarde, fora sozinha com Jacqueline ao cabeleireiro e depois foram tomar sorvetes no terraço da Reserva. Jacqueline, toda de preto em suas calças de corsário e com uma malha de linho, apagava ao seu redor até o brilho das crianças, assim tão lisa e dourada, tão dura e clara em pleno sol, tão insolente, tão fechada. Disse a O que tinha um encontro com o diretor com quem tinha filmado em Paris, para filmarem uns exteriores, provavelmente na montanha atrás de Saint-Paul-de-Vence. O rapaz estava lá, direto e resoluto. Não tinha necessidade de falar. Que estava apaixonado por Jacqueline, era óbvio. Bastava ver como a olhava. O que havia de surpreendente? O que surpreendia mais era Jacqueline. Semi-estendida numa das grandes poltronas basculantes, Jacqueline escutava, enquanto ele lhe falava de datas a fixar, de encontros a marcar e da dificuldade de conseguir dinheiro suficiente para terminar o filme iniciado. Tratava-a com intimidade e Jacqueline respondia fazendo sim ou não com a cabeça, semicerrando os olhos. O estava sentada diante dela, o rapaz entre as duas. Não teve dificuldade em observar que Jacqueline, com seus olhos baixos, e ao abrigo de suas pálpebras imóveis, espreitava o desejo do rapaz como sempre fazia achando que ninguém percebia. Mas o mais estranho foi vê-la perturbada, com as mãos pendentes, sem uma sombra de sorriso, grave, e como O nunca a tinha visto diante de René. Bastou um sorriso que durou apenas um segundo em seus lábios quando O inclinou-se para colocar na mesa seu copo de água gelada, e quando seus olhares se cruzaram, para O compreender que Jacqueline percebia que tinha sido decifrada. Mas não se perturbou e foi O quem enrubesceu. “Está com muito calor?”, perguntou Jacqueline. “Já vamos em cinco minutos. Aliás, você fica muito bem assim.” Depois sorriu novamente, ao levantar os olhos para o seu interlocutor. Mas desta vez com um tão terno abandono, que parecia impossível que ele não saltasse para beijá-la. Mas não. Era jovem demais para saber o impudor que existe na imobilidade e no silêncio. Deixou Jacqueline levantar-se, estender-lhe a mão, dizer-lhe adeus. Ela telefonaria. Disse então adeus à sombra que para ele era O, e de pé na calçada, ficou olhando o Buick negro afastar-se na avenida entre as casas que o sol queimava e o mar excessivamente azul. As palmeiras pareciam recortadas a serrote, os passantes, manequins de cera mal fundida, animados por um mecanismo absurdo. “Ele a agrada tanto assim?”, disse O a Jacqueline quando o carro já saía da cidade e pegava a estrada da alta cornija. “Isso lhe interessa?”, respondeu Jacqueline. “Interessa a René”, respondeu O.”O que também interessa a René e a Sir Stephen, se compreendi bem, assim como a alguns outros”, continuou Jacqueline, “é que está muito mal sentada. Vai amassar seu vestido”. O não se mexeu. “E pensei”, disse ainda Jacqueline, “que nunca devia cruzar os joelhos?” Mas O não escutava mais. Que lhe importavam as ameaças de Jacqueline? Se Jacqueline ameaçava denunciar O por este erro venial, imaginava assim impedir O de denunciá-la a René? Não era vontade que faltava a O. Mas René não suportaria saber que Jacqueline lhe mentia, nem que desejaria dispor de si mesma sem ele. Como fazer Jacqueline acreditar que se O se calasse seria para não ver René perder a cara, empalidecer por outra que não fosse ela, e talvez ter a fraqueza de não puni-la? Que seria, mais ainda, pelo medo de ver a cólera de René voltar-se contra ela própria, mensageira de más notícias, denunciadora? Como dizer a Jacqueline que se calaria, sem dar a impressão de fazer com ela um acordo, uma troca? Pois Jacqueline imaginava que O tinha um medo terrível, um medo que a gelava, do que lhe seria infligido se falasse.
Quando desceram do carro, no pátio da velha casa, não tinham mais se dirigido a palavra. Jacqueline, sem olhar O, colheu um ramo de gerânios brancos na cerca da fachada. O acompanhava-a tão de perto que pôde sentir o odor forte e sutil da folha amassada entre suas mãos. Pensaria poder assim disfarçar o odor de seu próprio suor que ajustava mais ainda e tornava mais negro sob as axilas o linho da sua malha? René estava sozinho na grande sala de ladrilhos vermelhos caiada de branco. “Vocês estão atrasadas”, disse, quando entraram. “Sir Stephen a espera”, acrescentou, dirigindo-se a O, “precisa de você e não está muito contente”. Jacqueline explodiu de rir, O olhou-a e corou. “Poderiam ter encontrado um outro momento”, disse René, que se enganou sobre o riso de Jacqueline e a perturbação de O. “Não é isso”, disse Jacqueline, “mas você não sabe, René; sua bela obediente não é tão obediente quando você não está. Veja seu vestido, como está amassado”. O estava de pé no meio da sala diante de René. Ele lhe disse para virar-se, mas não pôde se mexer. “Também cruza os joelhos”, disse ainda Jacqueline, “mas isto com certeza você não vê. Nem que namora os rapazes”. “Não é verdade”, gritou O, “é você”, e pulou sobre Jacqueline. René segurou-a quando ia bater em Jacqueline, ela debatia-se entre suas mãos pelo prazer de se sentir mais fraca e de estar à sua mercê, quando, levantando a cabeça, avistou Sir Stephen que a olhava, na soleira da porta. Jacqueline tinha se jogado no divã, com o rosto pequeno endurecido pelo medo e pela cólera e O sentiu que René, por mais ocupado que estivesse em mantê-la imóvel, só tinha atenção para Jacqueline. Parou de resistir, e desesperada por estar em erro sob os próprios olhos de Sir Stephen, repetiu ainda, desta vez em voz baixa: “Não é verdade, juro que não é verdade”. Sem uma palavra, e sem um olhar para Jacqueline, Sir Stephen fez sinal a René para largar O, e a O para passar. Mas, do outro lado da porta, O, imediatamente prensada contra a parede, tomada pelo ventre e pelos seios, com a boca entreaberta pela língua de Sir Stephen, gemeu de felicidade e de libertação. O bico de seus seios enrijecia-se sob a mão de Sir Stephen, que com a outra mão penetrava seu ventre tão rudemente que achou que ia desmaiar. Ousaria um dia dizer-lhe que nenhum prazer, nenhuma alegria, nenhuma fantasia poderia se aproximar da felicidade que experimentava com a liberdade com a qual a usava, com a idéia de que não tinha que ter nenhum cuidado, nenhum limite na maneira como podia procurar seu prazer no seu corpo? A certeza que tinha de que, quando a tocava, fosse para acariciá-la ou bater-lhe, ou de que, quando lhe dava alguma ordem, era unicamente porque tinha esse desejo, a certeza de que só levava em conta seu próprio desejo, causava-lhe tal satisfação, que cada vez que tinha a prova disso, e muitas vezes mesmo quando só pensava nisso, uma chapa de fogo, uma couraça ardente que ia dos ombros aos joelhos, abatia-se sobre ela. Enquanto estava ali, de pé contra a parede, com os olhos fechados, murmurando “eu o amo” quando o fôlego não lhe faltava, as mãos de Sir Stephen, frescas, entretanto, como uma fonte sobre este fogo que subia e descia nela, faziam-na arder mais ainda. Deixou-a docemente, baixando a saia sobre suas coxas úmidas, fechando seu bolero sobre os seios levantados. “Vem, O, preciso de você”. Então O, abrindo os olhos, percebeu bruscamente que havia alguém mais ali. A grande peça vazia e caiada, muito parecida com a sala pela qual se entrava, abria-se, do mesmo modo, por uma porta, para o jardim e, no terraço que precedia o jardim, sentado numa poltrona de vime com um cigarro nos lábios, uma espécie de gigante de crânio nu, com um enorme ventre que esticava sua camisa aberta e sua calça de linho, observava O. Levantou-se e veio até Sir Stephen que empurrava O na sua direção. Viu então nele, dependurada na ponta de uma correntinha de bolso onde se põe o relógio, o disco de Roissy. No entanto, Sir Stephen apresentou-o cortesmente a O, chamando-o “o Comandante”, sem dar-lhe nome, e pela primeira vez desde que começou a lidar com filiados a Roissy (com exceção de Sir Stephen), teve a surpresa de ver que beijava sua mão. Entraram os três na peça, deixando a janela aberta; Sir Stephen foi até a lareira do canto e tocou a campainha. O viu sobre a mesa chinesa, ao lado do divã, a garrafa de uísque, o sifão e os copos. Não era portanto para pedir bebidas. Observou ao mesmo tempo, colocada no chão, perto da lareira, uma grande caixa de papelão branco. O homem de Roissy tinha se sentado numa poltrona de vime, Sir Stephen ficara recostado à mesa redonda, com uma perna pendente, e O, a quem mostraram o divã, tinha docilmente levantado sua saia, e sentia contra suas coxas as suaves pontas de algodão da coberta provençal. Foi Norah quem entrou. Sir Stephen disse-lhe para tirar as roupas de O e levá-las. O deixou que tirasse seu bolero, seu vestido, a cinta de barbatanas que estrangulava sua cintura, suas sandálias. Assim que a deixou nua, Norah partiu e O, retomando o automatismo da regra de Roissy, certa de que Sir Stephen só desejava dela sua perfeita docilidade, ficou de pé no meio da sala, com os olhos baixos, de tal modo que adivinhou mais do que viu, Natalie escorregar pela janela aberta, vestida de negro como sua irmã, com os pés nus e muda. Certamente Sir Stephen já tinha se explicado à respeito de Natalie; contentou-se em nomeá-la ao visitante, que não fez nenhuma pergunta, e em pedir-lhe que servisse a bebida. Assim que serviu uísque, água de Seltz e gelo (e no silêncio, só o tinido dos cubos de gelo esbarrando nos vidros fazia um ruído dilacerante), o Comandante, com seu copo na mão, levantou-se da poltrona de vime onde estava sentado enquanto se tirava a roupa de O, e aproximou-se dela. O pensou que com sua mão livre ia agarrar seu seio ou penetrar no seu ventre. Mas não a tocou, contentando-se em olhá-la bem de perto, com sua boca entreaberta e seus joelhos separados. Andou ao seu redor, atento aos seus seios, às suas coxas, às suas nádegas, e esta atenção sem uma palavra, a presença deste corpo gigantesco tão próximo, perturbava O a ponto de não saber se desejava fugir ou ao contrário, que ele a derrubasse e a esmagasse. Estava tão perturbada que perdeu o controle e levantou os olhos para Sir Stephen para procurar socorro. Ele compreendeu, sorriu, e tomando suas mãos reuniu-as atrás das costas dentro da sua. Apoiou-se nele com os olhos fechados, e foi num sonho, ou pelo menos no crepúsculo de um semi-sono de esgotamento, como quando era criança, ao sair de uma anestesia tinha ouvido as enfermeiras, que pensavam que ainda dormia, falarem dela, de seus cabelos, de sua cor pálida, de seu ventre achatado onde a penugem começava a aparecer, que ouviu o estrangeiro fazer um cumprimento a seu respeito para Sir Stephen, insistindo sobre o prazer dos seios um tanto pesados e da cintura estreita, dos ferros mais grossos, mais longos e mais visíveis do que de costume. Compreendeu ao mesmo tempo que certamente Sir Stephen teria prometido emprestá-la na semana seguinte, posto que lhe agradecia. A seguir, Sir Stephen segurou-a pela nuca, lhe dizendo suavemente para despertar e subir para esperá-lo com Natalie, em seu quarto.
Valia a pena ficar tão perturbada, e que Natalie, bêbada de alegria à idéia de ver O possuída por alguém que não fosse Sir Stephen, dançasse ao seu redor uma espécie de dança de peles-vermelhas e gritasse: “Você acha que ele vai entrar na sua boca também, O? Viu como olhava sua boca? Ah, como é feliz porque a desejam! Certamente vai chicoteá-la: por três vezes olhou as marcas que mostram que foi chicoteada. Pelo menos, durante esse tempo não vai pensar em Jacqueline”. “Mas eu não penso em Jacqueline todo o tempo”, respondeu O, “como você é boba”. “Não! eu não sou boba”, disse a pequena, “sei muito bem que ela lhe faz falta”. Era verdade, mas não totalmente. O que faltava a O não era propriamente Jacqueline, mas o uso de um corpo de mulher, do qual pudesse fazer o que quisesse. Se Natalie não lhe tivesse sido proibida, teria possuído Natalie, e o único motivo que a impedia de violar a proibição era a certeza de que lhe dariam Natalie em Roissy, dentro de algumas semanas, e que antes seria diante dela, por ela, e graças a ela, que Natalie seria entregue. Desejava ardentemente aniquilar a muralha de ar, de espaço, de vazio, enfim, que existia entre Natalie e ela, e ao mesmo tempo usufruía da espera a que estava obrigada. Disse-o a Natalie, que sacudiu a cabeça e não acreditou. “Se Jacqueline estivesse aí, e quisesse, você a acariciaria”. “É claro”, disse O rindo. “Você vê...”, continuou a criança. Como fazê-la compreender, e valeria a pena?, que não, que não estava apaixonada por Jacqueline, nem aliás por Natalie, ou por qualquer mulher em particular, mas somente pelas mulheres como tais, como se pode estar apaixonado por sua própria imagem — achando sempre as outras mais sedutoras e mais belas do que ela própria. O prazer que encontrava em ver uma mulher ofegar sob suas carícias, seus olhos se fecharem, em fazer com que os bicos dos seios se levantassem sob seus lábios e seus dentes, em penetrar nela com sua mão perscrutando dentro de seu ventre e entre suas nádegas — e senti-la fechar-se em torno de seus dedos ouvindo-a gemer, fazia-a perder a cabeça —, este prazer só era tão agudo porque tornava-lhe presente e certo o prazer que por sua vez dava, quando por sua vez fechava-se sobre o que a penetrava, e gemia, com a diferença de que não concebia poder ser dada assim a uma mulher, como esta lhe era dada, mas só a um homem. Parecia-lhe, além disso, que as mulheres que acariciava pertenciam por direito ao homem a quem ela mesma pertencia, e que só se encontrava aí por procuração. Se Sir Stephen tivesse entrado quando acariciava Jacqueline, nesses dias precedentes em que Jacqueline vinha encontrá-la à hora da sesta, teria sem o menor remorso, e bem ao contrário, com um prazer total, segurado para ele, com as duas mãos, e à força, as coxas abertas de Jacqueline, se quisesse possuí-la em vez de apenas olhá-la através da divisória da clarabóia, como tinha feito. Podia ser lançada à caça, sem falta. E justamente... Nesse momento, quando novamente, com o coração batendo, pensava nos lábios delicados e tão rosados de Jacqueline sob os pêlos louros de seu ventre, no círculo ainda mais delicado e rosado entre suas nádegas, que só tinha ousado forçar por três vezes, ouviu Sir Stephen que se movimentava em seu quarto. Sabia que ele podia vê-la, no entanto não o via, e uma vez mais sentiu que ficava feliz com esta exposição constante, com esta constante prisão de seu olhar onde estava fechada. A pequena Natalie estava sentada sobre o tapete branco no meio do quarto, como uma mosca no leite, mas O de pé diante da cômoda bojuda que lhe servia de penteadeira, e acima da qual se via até a metade do corpo num espelho antigo, um pouco esverdeada e trêmula como dentro de um lago, fazia pensar nessas gravuras do fim do século passado, onde as mulheres passeavam nuas na penumbra dos apartamentos, no coração do verão. Quando Sir Stephen abriu a porta, virou-se tão bruscamente, apoiando as costas na cômoda, que os ferros entre suas pernas esbarraram num dos puxadores de bronze e tiniram. “Natalie”, disse Sir Stephen, “vai buscar a caixa de cartolina branca que ficou embaixo, na segunda sala”. Natalie, voltando, colocou a caixa sobre a cama, abriu-a e tirou, um por um, os objetos que continha, desembrulhando-os de seu papel de seda, e entregando-os ao acaso a Sir Stephen. Eram máscaras. Ao mesmo tempo capacetes e máscaras, e via-se que eram feitos para cobrir toda a cabeça, só deixando livres, além da fenda para os olhos, a boca e o queixo. Gavião, falcão, coruja, raposa, leão, touro, só havia máscaras de animais, na medida humana, mas feitos com a pele ou as penas do animal verdadeiro, a órbita do olho sombreada de cílios quando o animal tinha cílios (como o leão) e o pêlo ou as penas descendo o suficiente como para alcançar os ombros de quem as usasse. Bastava apertar uma correia bem larga, escondida sob esta espécie de capacete que caía por trás, para que a máscara se aplicasse estreitamente acima do lábio superior (tendo um orifício para cada narina) e sobre o rosto. Uma armação de cartolina modelada e endurecida mantinha sua forma rígida, entre o revestimento exterior e o forro da pele. Na frente do grande espelho onde se via de pé, O experimentou cada uma das máscaras. A mais extravagante, e aquela que ao mesmo tempo mais a transformava e lhe parecia a mais natural, era uma das máscaras de coruja (havia duas), sem dúvida porque era de penas ruivas e beges, cuja cor fundia-se com a cor da sua pele; a capa de plumas escondia quase completamente seus ombros descendo até a metade das costas e na frente até o nascimento dos seios. Sir Stephen mandou que tirasse o batom de seus lábios, depois, quando retirou a máscara, disse-lhe: “Você será então coruja para o Comandante. Mas perdoe-me, O, pois vai ser levada na corrente. Natalie, vai buscar uma corrente e pinças na primeira gaveta da minha secretária”. Natalie trouxe a corrente e as pinças, com as quais Sir Stephen abriu o primeiro elo, que passou no segundo anel que O trazia sob o ventre, fechando-o novamente. A corrente, semelhante às que se usam para amarrar os cães —, tinha um metro e meio de comprimento, terminando por uma alça. Sir Stephen disse a Natalie, depois que O tinha novamente vestido a máscara, para segurar a extremidade e caminhar na peça diante de O. Natalie fez três vezes a volta do quarto, puxando atrás dela, pelo ventre, O nua e mascarada. “Pois bem”, disse Sir Stephen, “o Comandante tinha razão, é necessário também fazê-la depilar-se completamente. Será para amanhã. Por enquanto, fique com a corrente”.
Na mesma noite, e pela primeira vez na companhia de Jacqueline e de Natalie, de René e de Sir Stephen, O jantou nua, com sua corrente passada entre as pernas, levantada sobre as nádegas e dando a volta à cintura. Norah servia sozinha e O fugia do seu olhar: Sir Stephen, duas horas antes, mandara chamá-la.
Foram as lacerações bem frescas, mais ainda do que os ferros e a marca nas nádegas, que transtornaram a moça do salão de beleza onde, no dia seguinte, O foi depilar-se. De nada adiantou dizer-lhe que esta depilação a cera, em que se arranca de um só golpe a cera endurecida onde estão grudados os pêlos, não é menos aguda do que um golpe de chibata, e repetir-lhe, e até mesmo tentar explicar-se, se não qual era a sua sorte, pelo menos que estava feliz com ela; não houve meio de acalmar seu espanto, nem o seu horror. O único efeito das tentativas de O para acalmá-la foi que, em vez de ser olhada com piedade, como tinha sido no primeiro instante, passou a ser vista com horror. Quando terminou e estava para sair da cabine onde tinha sido aberta como para o amor, por mais gentilmente que agradecesse, por maior que fosse a quantia que deixava, sentiu que era escorraçada, mais do que simplesmente partia.
Que lhe importava? Era claro aos seus olhos que havia algo de chocante no contraste entre os pêlos do seu ventre e as plumas da sua máscara, assim como também era claro que este aspecto de estátua do Egito que lhe conferia a máscara, e que seus ombros largos, seus quadris estreitos e suas longas pernas acentuavam, exigiam que sua carne fosse inteiramente lisa. Mas só as efígies das deusas selvagens ofereciam tão alta e visível a abertura do ventre, entre cujos lábios aparecia a ponta mais fina dos lábios. E alguma vez já foram vistos furados pelos anéis? O lembrou-se da moça ruiva e roliça que encontrara na casa de Anne-Marie, e que dizia que seu senhor só se servia do anel do seu ventre para amarrá-la ao pé de sua cama, e também que a queria depilada porque só assim ficava inteiramente nua. O teve medo de desagradar a Sir Stephen que gostava tanto de puxá-la para ele segurando seus pêlos, mas se enganava: Sir Stephen achou-a sedutora, e quando vestiu sua máscara, sem pintura nos lábios do rosto e do ventre que ficaram tão pálidos, acariciou-a quase timidamente como se faz num animal que se quer conquistar. Sobre o lugar onde queria levá-la, nada tinha dito, nem sobre a hora em que deviam partir ou quem seriam os convidados do Comandante. Mas durante todo o resto da tarde veio dormir ao seu lado, e à noite pediu o jantar no quarto para ambos. Partiram no Buick uma hora antes da meia-noite, O coberta com uma grande capa escura de montanha e com tamancos de madeira nos pés; Natalie, vestida com calça e malha pretas, segurava-a por sua corrente, cuja alça estava pregada ao bracelete que usava no pulso direito. Sir Stephen guiava. A lua, quase cheia, estava alta e iluminava com grandes placas enevoadas a estrada, as árvores e as casas das aldeias que a estrada atravessava, deixando negro como a tinta da China tudo o que não iluminava. Havia ainda alguns grupos nas soleiras das portas, onde se sentia um movimento de curiosidade à passagem deste carro fechado (Sir Stephen não tinha aberto a capota). Os cães latiam. Do lado onde batia a luz, as oliveiras pareciam nuvens de prata flutuando a dois metros do solo, os ciprestes, plumas negras. Nada era verdadeiro neste país que a noite devolvia ao imaginário, a não ser o odor dos sauge e das lavandas. A estrada subia sempre e, no entanto, o mesmo sopro quente cobria a terra. O deixou cair sua capa dos ombros. Não a veriam, não havia ninguém mais. Dez minutos mais tarde, depois de passarem ao longo de um bosque de carvalhos novos, no alto de uma colina, Sir Stephen diminuiu a marcha diante de um longo muro, até um portão que se abriu à aproximação do carro. Estacionou num pátio, enquanto fechavam a porta atrás dele; em seguida desceu, e fez descerem Natalie e O, que por sua ordem deixou no carro sua capa e seus tamancos. A porta que empurrou dava para um claustro de arcadas renascentistas, do qual só três lados subsistiam, o pátio enladrilhado era prolongado por um pequeno terraço também enladrilhado. Uma dezena de pares dançavam no terraço e no pátio, algumas mulheres muito decotadas e homens em spencer branco sentavam-se ao redor de pequenas mesas iluminadas por velas, havia uma vitrola sob a galeria da esquerda e, sob a galeria da direita, um buffet. Mas a lua dava tanta claridade quanto as velas, e, quando caiu direto sobre O, que Natalie, pequena sombra negra, puxava para a frente, os que a viram pararam de dançar e os homens que estavam sentados levantaram-se. O rapaz perto da vitrola, sentindo que alguma coisa acontecia, virou-se impressionado e parou o disco. O não avançava mais e Sir Stephen, imóvel dois passos atrás dela, esperava também. O Comandante afastou os que tinham se agrupado em torno de O trazendo tochas para vê-la mais de perto. “Quem é?” , diziam, “a quem pertence?” “A vocês, se quiserem”, respondeu, e levou Natalie e O para um canto do terraço onde havia um banco de pedra coberto por uma cambojiana e encostado num pequeno muro. Quando O já estava sentada, com as costas apoiadas ao muro, as mãos repousando sobre os joelhos e Natalie no chão, sempre segurando a corrente, afastou-se. O procurou Sir Stephen com os olhos e a princípio não o enxergou. Depois adivinhou-o, recostado num canapé, no outro canto do terraço. Podia vê-la, ficou tranqüila. A música tinha recomeçado, os dançarinos novamente dançavam. Um ou dois casais aproximaram-se dela, primeiro como que por acaso, continuando a dançar, depois um deles abertamente, a mulher puxando o homem. O fixava-os com suas olheiras de bistre sob a plumagem, muito abertas, como os olhos do pássaro noturno que representava, e tão forte era a ilusão que o que parecia mais natural, ou seja, que a interrogassem, ninguém pensava, como se ela fosse uma verdadeira coruja, surda à linguagem humana, e muda. Desde a meia- noite até a madrugada, que começou a clarear o céu ao leste por volta de cinco horas, enquanto a lua se distanciava descendo para oeste, aproximaram-se dela muitas vezes até tocarem-na, diversas vezes fizeram um círculo ao seu redor, diversas vezes afastaram seus joelhos levantando a corrente e trazendo um destes candelabros com duas ramificações em faiança provençal — e ela sentia a chama das velas esquentar o interior de suas coxas —, para ver como sua corrente estava fixada; houve até um americano bêbado que a segurou com a mão, mas quando percebeu que tinha agarrado com toda a mão a carne e o ferro que a atravessava, sua embriaguez dissipou-se bruscamente, e O viu nascerem em seu rosto o horror e o desprezo que já vira no rosto da moça que a tinha depilado; ele partiu. Houve ainda uma moça muito jovem, com os ombros nus e um minúsculo colar de pérolas no pescoço, num vestido branco de primeiro baile para debutantes, duas rosas-chá na cintura, e pequenas sandálias douradas nos pés, que um rapaz levou para sentar-se bem perto de O, à sua direita; depois pegou sua mão e forçou-a a acariciar os seios de O que estremeceram sob a mão leve e fresca, e a tocar-lhe sob o ventre, tanto o anel, como o buraco por onde passava o anel; a jovenzinha obedecia em silêncio e, quando o rapaz lhe disse que faria o mesmo, não teve nenhum movimento de repulsa. Mas mesmo dispondo assim de O, e mesmo tomando-a assim como modelo ou como objeto de demonstração, nenhuma vez lhe dirigiram a palavra. Era, então, de pedra ou de cera, ou talvez uma criatura de outro mundo e pensava-se que era inútil falar-lhe, ou quem sabe não ousavam? Foi apenas quando já tinha amanhecido totalmente, e quando todos os dançarinos tinham partido, que Sir Stephen e o Comandante, despertando Natalie que dormia aos pés de O, fizeram o levantar-se, conduziram-na ao meio do pátio, tiraram sua corrente e sua máscara e, derrubando-a sobre uma mesa, possuíram-na alternadamente.
Num último capítulo que foi suprimido, O voltava a Roissy, onde Sir Stephen a abandonava.
Existe um segundo fim para a história de O. É que, vendo-se a ponto de ser abandonada por Sir Stephen, preferiu morrer, no que ele consentiu
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Um comentário:
Um texto que faz arder a qualquer leitor.
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