As imagens do deserto, Travis destruido pela separação, um farrapo
A tentativa de recordação, velhos momentos felizes
A constatação de "desencaixado" na sociedade, a tentativa de explicar isto ao filho
A antológica cena do peep-show, quando Travis e Jane conversam separados por um espelho, a mais emocionante declaração de amor que ja vi
O reencontro mãe e filho ....
“Foi ali que eu comecei”, diz Travis a seu irmão Walt, sobre a foto de um terreno vazio na pequena cidade de Paris, estado do Texas, lugar onde sua mãe lhe disse que ela e seu pai haviam “feito amor” pela primeira vez. Esta foto e esta lembrança são duas das poucas coisas que Travis traz de sua vida após quatro anos desaparecido. Quando Walt o encontra, vagando por uma estrada do Texas, Travis é um farrapo humano: sujo, roupas gastas, magro, mudo, sem memória, o olhar perdido no horizonte, tentando divisar e alcançar a pequena Paris, o lugar onde começou.
( ... )dando início assim à plena realização do filme dentro deste clássico gênero do cinema americano, o road movie. Gênero habitado por personagens solitárias, errantes, que vagam incessantemente de um lugar a outro, fugindo de um passado tão doloroso quanto misterioso, única forma encontrada de expiar a culpa que carregam pela sua história. Assim, durante a viagem, que está longe de terminar quando eles chegam a Los Angeles, Travis vai muito lentamente se revelando, rememorando sua história, restabelecendo laços com sua família e desejando remediar os erros do passado. Mas ele continua guardando para si as respostas que todos querem conhecer: por onde ele andou nos últimos quatro anos? O que aconteceu com seu casamento? Por onde anda sua esposa Jane?
(...)
As imagens de Travis no início do filme, vagando a esmo pelo deserto, refletem a sua condição interior, o vazio de sua alma, a ausência de perspectivas e o esquecimento que vêm após a sua tragédia familiar. Mostram-no também desenraizado, sem laços, que ele voltará reconstruir quando chegar à casa do irmão, especialmente sua relação com o filho.
No plano poético, as emoções provocadas pelo filme (solidão, desamparo, melancolia) são obtidas graças ao uso da música (já descrita acima), ao ritmo lento da montagem e dos movimentos de câmera, às características psicológicas das personagens (principalmente Anne, Hunter e Travis, na maior parte do filme), à grande presença do silêncio e à forma lenta como são oferecidas ao espectador as informações que lhe possibilitam compreender o filme e a história de suas personagens.
No plano narrativo, dá-se muito lentamente o conjunto de informações que possibilita ao espectador compreender as personagens, seus laços e motivações. Além disso, opta-se por elipsar o momento mais dramático da história, ou seja, os episódios de conflito entre Travis e Jane, quando ainda moravam juntos e a saída dele de casa. O filme começa quando tudo isso aconteceu há quatro anos, e, é apenas na cena em que os dois voltam a conversar, que estes fatos nos são narrados no tom monocórdico da voz de Travis, completamente desdramatizados. Assim, não há uso de flashback, não se mostram as imagens dramáticas da história do casal. Desta maneira, constrói-se um filme “lento” e “silencioso” no qual os eventos cruciais da história das personagens já aconteceram num passado violento, ruidoso e selvagem.
A antológica cena do peep-show, quando Travis e Jane conversam separados por um espelho, mas com as imagens de seus rostos nele sobrepostas, ilustra a maneira como um dia eles foram um só e ao mesmo tempo marca a impossibilidade do reencontro, a separação. Nesta cena, Jane (N. Kinski) é fotografada a maior parte do tempo em plano de conjunto e do lado do espelho do qual olha Travis; há apenas um ou dois close-ups seus nesta longa cena. Este procedimento a fragiliza, torna-a vulnerável, e imediatamente instaura a condição de voyeur em Travis e em nós mesmos (espectadores), outra clara referência aos trabalhos de Hopper, onde este tipo de olhar é tão comum. Além deste particular recorte (o do enquadramento fotográfico), há também aquele da opção de mostrar-nos Jane somente em seu local de trabalho, ocultando-nos todo o resto de sua vida (seu cotidiano) e seu percurso até ali. Toda a tensão vivida por Travis (Stanton) neste encontro (o prazer de rever a mulher que ama após anos e a constatação de ser incapaz de cuidar dela, viver ao seu lado) é expressa na forma fria e distante como narra os momentos dramáticos de sua própria história com ela e também na maneira aparentemente muito controlada (na verdade, próxima do descontrole) com que movimenta seu corpo na cabine (como coloca lenta e cuidadosamente o telefone sobre a mesa, levanta-se e gira a cadeira para sentar-se de costas para ela, não olhar para seu rosto – ainda que ela não possa vê-lo).
Neste pequeno conto trágico sobre a história de um casal, podemos observar o olhar estrangeiro do alemão Wenders sobre a América, cheio de reverência e fascinação. Ele nos mostra a vastidão das paisagens, dos grandes espaços virgens de terra; notemos que Walt gerencia uma empresa que produz painéis publicitários, outdoors (que, em inglês, também significa as paisagens do campo, de fora da cidade, os grandes espaços abertos, ao ar livre) e mora numa bela casa de subúrbio, que lhe custou “os olhos da cara”, o preço do sonho americano. Num outro momento, de reverência mais explícita, na cena em que Travis e Hunter estão esperando Jane na porta do banco, em Houston, a câmera começa a se mover, displicente, explorando aparentemente sem propósito os arredores, até que enquadra, no topo de um guindaste, a bandeira americana (com direito a fade-out e belo acorde da guitarra de Cooder).
À parte o olhar e as decisões do diretor, as cores americanas do filme também devem muito ao seu roteirista, o escritor americano Sam Sheppard, cuja obra está repleta de paisagens empoeiradas, de personagens errantes e de beira de estrada. Uma olhada nos contos de seu livro Crônicas de Motel nos joga de imediato no universo ficcional de PARIS, TEXAS.
No elenco, os atores estão todos excelentes vivendo seus personagens. O pequeno Hunter surpreende em seu movimento de aproximação à Travis e no vigor do desejo de reencontrar a mãe; Stanton, no início do filme, é a própria encarnação da desmemoriação e fragilidade, assumindo depois com convicção sua missão de unir mãe e filho; Kinski está soberba em seu momento de reencontro (reconhecimento) com Travis, novamente utilizada com parcimônia – e sabedoria.
É impossível não lembrar, naquela cena em que Travis e Hunter entram de carro em Houston através das imensas highways e viadutos, de uma seqüência semelhante (mas muito mais longa) em Solaris, de Tarkovski; afinal, sabemos ser este diretor, para Wenders, um dos três anjos do cinema.
PARIS, TEXAS ainda nos dá, entre Jane e Hunter, talvez o mais belo abraço da história do cinema.
André França
PARIS, TEXAS; Wim Wenders, Alemanha/França, 1984
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