quinta-feira, 5 de junho de 2008

Caligula, fragmento 02

CALÍGULA, sentando-se e falando docemente- Não posso, Helicon, já não posso.

HELICON- Porquê?


- Se durmo, quem me dará a Lua?

Helicon, após uma pausa- É verdade. (Calígula levantou-se com um esforço visível.)

- Escuta, Helicon. Ouço passo e vozes. Cala-te e esquece que me viste.

- Entendido. (Calígula dirige-se para a saída. Volta-se.)

- E, se fazes favor, ajuda-me de hoje em diante.

- Não tenho razões para o não fazer, Caius. Mas, das muitas coisas que sei, poucas te interessam. Logo, em que posso eu ajudar-te?

- No impossível.

- Farei o possível.

(...)

- E quem te disse que não sou feliz?

- A felicidade é generosa. Não vive de destruições.

- Então é porque há duas espécies de felicidade, e eu escolhi a dos assassinos. Porque sou feliz. Houve um tempo em que pensei atingir o limite da dor. Pois bem: pode-se ir mais longe ainda! No fim dessas paragens existe uma felicidade estéril e magnífica. Olha-me: (Ela olha-o.) Eu rio-me, Cesónia, quando penso que, durante anos e anos, Roma inteira evitou pronunciar o nome de Drusilla. Porque Roma se enganou durante anos e anos. O amor não me basta: é isto que acabo de compreender. É isso que eu vejo hoje mesmo, ao contemplar-te. Porque amar alguém, é aceitar envelhecer com esse alguém. Eu não sou capaz desse amor. Drusilla velha, seria bem pior que Drusilla morta. Julga-se que um homem sofreu porque lhe morreu um dia o ser amado. Mas o seu verdadeiro sofrimento não é tão fútil: é perceber que nem sequer o desgosto dura! Até a dor não faz sentido.
Bem sabes que não tinha desculpas, nem mesmo a sombra de um amor, nem a amargura da melancolia. Não tenho alibi. Mas hoje, eis-me ainda mais livre do que há anos era, liberto que estou da memória e da ilusão. (Ri apaixonadamente.) Sei que nada dura! Oh! Saber isto! Fomos só dois ou três, na história, que tivemos a verdadeira experiência disto, que pudemos atingir esta felicidade demente. Cesónia: seguiste, até ao fim, uma tragédia bastante curiosa. É tempo de cair sobre ti a cortina. (Passa de novo por trás dela e passa-lhe o antebraço à volta do pescoço.)

CESÓNIA, apavorada- A felicidade é, portanto, essa liberdade espantosa?

CALÍGULA, apertando-lhe a pouco e pouco o pescoço- Podes ter a certeza, Cesónia. Sem ela, eu teria sido um homem satisfeito. Graças a ela conquistei a divina clarividência do solitário. (Exalta-se cada vez mais, estrangulando Cesónia a pouco e pouco, enquanto ela se abandona sem resistir, com as mãos abertas para a frente; e fala-lhe debruçado sobre o ouvido.) Vivo, mato, exerço o poder delirante do destruidor, ao pé do qual o do Criador parece uma macaquice. É isso ser feliz. É isso a felicidade, essa insuportável libertação, esse desprezo universal, o sangue, o ódio em meu redor, esse isolamento sem par do homem que põe toda a sua vida diante de si, a alegria desmedida do assassino impune, essa lógica implacável que rebenta as vidas humanas (ri), que te destrói, Cesónia, para perfazer, enfim, a solidão eterna que desejo.

(...)
- À história, Calígula, à história!

(O espelho quebra-se e, nesse instante, entram por todas as portas os conjurados, em armas. Calígula faz-lhes frente, com um riso de louco. O Velho Patrício fere-o pelas costas e Cherea em pleno rosto. O riso de Calígula transforma-se em soluços. Todos o ferem. Num último soluço, Calígula, rindo e estrebuchando, grita:)

- Ainda estou vivo!


Albert Camus trecho da peça Calígula

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