sexta-feira, 4 de abril de 2008
" Almas gêmeas"
«(...)As almas gémeas quase nunca se encontram, mas, quando se encontram, abraçam-se. Naqueles momentos em que alguém diz uma coisa, que nunca ouvimos, mas reconhecemos não sei de onde. E em que mergulhamos sem querer, como se estivéssemos a visitar uma verdade que desconfiávamos existir, de onde desconfiamos ter vindo, mas aonde não tínhamos conseguido voltar.
O coração sente-se. A alma pressente-se. O coração anda aos saltos dentro do peito, a soluçar como um doido, tão óbvio que chega a chatear.
Mas a alma é uma rocha branca onde estão riscados os sinais indeléveis da nossa existência.
(...) Gémea não é igual. É parecida. Não é um espelho. É uma janela. Não é um reflexo. É uma refracção.
(...) O desejo de encontrar uma alma gémea não é o desejo de reafirmarmos a unicidade da nossa existência através de outro que é igual a nós. É precisamente o contrário. É poderr descansar dessa demanda.
No fundo, todos nós duvidamos que tenhamos uma alma.
Senão não falávamos tanto dela.
Uma alma gémea é a prova que não estamos sozinhos.
(...) O estado normal de duas almas gémeas é o silêncio.
Não é o "não ser preciso falar" - é outra foma de falar, que consiste numa alma descansar na outra. Não é a paz dos amantes nem a cumplicidade muda dos amigos. Não precisa de amor nem de amizade para se entender.
As almas acharam-se. Não têm passado. Não se esforçaram. Estão.
É essa a maior paz do mundo. Como é que um ninho pode ser ninho doutro ninho? Duas almas gémeas podem ser. Como é que se reconhece a alma gémea? No abraço.
(...) Quando duas almas gémeas se abraçam, sente-se o alívio imenso de não ter de viver. Não há necessidade, nem desejo, nem pensamento. A sensação é de sermos uma alma no ar que reencontrou a sua casa, que voltou finalmente ao seu lugar, como se o outro corpo fosse o nosso que perdêramos desde a nascença.
(...) As almas gémeas revelam-se uma à outra. Não são iguais. Mas revelam-se de forma igual. Como se tivesse surgido, de repente, uma língua que só os dois conseguissem falar.
(...) Toda a angústia do eu se dissipa. É-se inteira e naturalmente aceite. Sem perguntas. Sem condições. Sem promessas. E mergulha-se no outro como se já não fosse preciso existirmos.»
Miguel Esteves Cardoso
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