quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Trópico de Câncer



ESTOU VIVENDO NA VILLA BORGHESE. Não há um resquício de sujeira em parte alguma, nem uma cadeira fora do lugar. Estamos completamente sozinhos aqui e estamos mortos.


Ontem à noite, Bóris descobriu que estava com chatos. Tive de raspar-lhe as axilas e mesmo depois disso a coceira não passou. Como pode alguém adquirir chatos num lugar bonito como este? Mas isso não tem importância. Talvez nunca nos tivéssemos conhecido tão intimamente, Bóris e eu, se não fossem os chatos.

Bóris acaba de oferecer-me uma síntese de suas idéias. É um profeta meteorológico. O tempo continuará ruim, diz ele. Haverá mais calamidades, mais morte, mais desespero.

Não há a menor indicação de mudança em parte alguma. O câncer do tempo está nos comendo. Nossos heróis mataram-se ou estão se matando. O herói, então, não é o Tempo, mas a Ausência de Tempo. Precisamos acertar o passo, em ritmo acelerado, em direção à prisão da morte. O tempo não vai mudar.

Estamos no outono do meu segundo ano em Paris. Mandaram-me para cá por uma razão que ainda não consegui compreender.

Não tenho dinheiro, nem recursos, nem esperanças. Sou o mais feliz dos homens vivos. Há um ano, há seis meses, eu pensava ser um artista. Não penso mais nisso.

Eu sou. Tudo quanto era literatura se desprendeu de mim. Não há mais livros a escrever, graças a Deus.

E isto então? Isto não é um livro. Isto é injúria, calúnia, difamação de caráter. Isto não é um livro, no sentido comum da palavra. Não, isto é um prolongado insulto, uma cusparada na cara da Arte, um pontapé no traseiro de Deus, do Homem, do Destino, do Tempo, do Amor, da Beleza... e do que mais quiserem. Vou cantar para você, um pouco desafinado talvez, mas vou cantar. Cantarei enquanto você coaxa, dançarei sobre seu cadáver sujo...

Para cantar é preciso primeiro abrir a boca. É preciso ter um par de pulmões e um pouco de conhecimento de música. Não é necessário ter harmônica ou violão. O essencial é querer cantar. Isto é, portanto, uma canção. Eu estou cantando.

É para você, Tânia, que estou cantando. Desejaria poder cantar melhor, mais melodiosamente, mas então talvez você jamais consentisse em ouvir-me. Você já ouviu outros cantarem e permaneceu fria. Cantavam bonito demais ou não cantavam suficientemente bonito.

Estamos em vinte e tantos de outubro. Não acompanho mais as datas. Que diz você? Meu sonho de 14 de novembro do ano passado?

Há intervalos, mas ficam entre sonhos e deles não resta consciência alguma. O mundo ao meu redor está se dissolvendo, deixando aqui e acolá manchas de tempo.

O mundo é um câncer que está comendo a si próprio... Estou pensando que, quando o grande silêncio descer sobre tudo e todos, a música triunfará por fim. Quando tudo se retirar de novo para o útero do tempo, o caos será restabelecido, e o caos é a página sobre a qual a realidade está escrita. Você, Tânia, é o meu caos.

É por isso que canto. Não sou nem eu, é o mundo morrendo, deixando cair a pele do tempo. Eu ainda estou vivo, dando pontapés em seu útero, uma realidade sobre a qual escrever.

Adormecendo. A fisiologia do amor. A baleia com seu pênis de um metro e oitenta, em repouso. O morcego - pênis libre. Animais com um osso no pênis. Daí, um osso espetado... "Felizmente", diz Gourmont, "a estrutura óssea está perdida no homem".

Felizmente? Sim, felizmente. Imagine-se a espécie humana andando de um lado para outro com um osso espetado. O canguru tem pênis duplo: um para os dias úteis e outro para os feriados. Adormecendo. Uma carta de fêmea perguntando se encontrei um título para meu livro. Título? Certamente:

"Adoráveis Lésbias".

Sua vida anedótica! Uma frase do Senhor Borowski. É nas quartas-feiras que almoço com Borowski. Sua esposa, que é uma vaca seca, preside. Ela agora está estudando inglês e sua palavra favorita é "filthy". Isso permite ver imediatamente como são chatos os Borowski. Mas espere... Borowski usa ternos de tecido aveludado e toca harmônica. Combinação insuperável, especialmente se considerarmos que ele não é mau artista. Faz-se passar por polonês, mas naturalmente não é. É judeu, esse Borowski, e seu pai era um filatelista. Na verdade, quase todo Montparnasse é judeu ou meio-judeu, o que é ainda pior. Há Carl e Paula, Cronstadt e Bóris, Tânia e Sylvester, e Moldorf e Lucille. Todos, com exceção de Fillmore. Henry Jordan Oswald também acabou revelando-se judeu. Louis Nichols é judeu. Até mesmo Van Norden e Chérie são judeus. Francês Blake é judeu ou judia. Titus é judeu. Os judeus estão caindo sobre mim como neve. Estou escrevendo isto para meu amigo Carl, cujo pai é judeu. É importante compreender tudo isto.

De todos os judeus, a mais adorável é Tânia, e por ela eu também ficaria judeu. Por que não? Já falo como um judeu. E sou feio como um judeu. Além disso, quem odeia os judeus mais do que o judeu?

Hora do crepúsculo. Azul indiano, água de vidro, árvores reluzentes e liquescentes. Os trilhos desaparecem no canal em Jaurés. A comprida lagarta com os lados esmaltados mergulha qual montanha russa. Não é Paris. Não é Coney Island. É uma mistura crepuscular de todas as cidades da Europa e América Central. Os pátios ferroviários embaixo de mim, os trilhos pretos e trançados, não ordenados pelo engenheiro, mas de desenho cataclísmico, como aquelas sombrias fendas no gelo polar que a câmera registra em tons de preto.

Comida é uma das coisas de que gosto tremendamente. E nesta bela Villa Borghese raramente há indícios de comida. É positivamente pavoroso às vezes. Repetidamente pedi a Bóris que encomendasse pão para o desjejum, mas ele sempre se esquece. Parece que faz seu desjejum fora. E quando volta está pautando os dentes e há um pouco de ovo pendurado em seu cavanhaque. Come no restaurante, por consideração a mim. Diz que lhe dói comer uma grande refeição enquanto olho.

Gosto de Van Norden, mas não partilho de sua opinião a respeito de si próprio. Não concordo, por exemplo, em que ele seja filósofo ou pensador. É obcecado por fêmeas, nada mais. E nunca será um escritor. Sylvester também jamais será um escritor, embora seu nome cintile em lâmpadas vermelhas de 50.000 velas. Os únicos escritores ao meu redor pelos quais tenho algum respeito, atualmente, são Carl e Bóris. São possessos. Brilham por dentro com uma chama branca. Estão mortos e surdos aos tons musicais. São sofredores.

Por outro lado, Moldorf, que também sofre à sua maneira, não é louco. Tem a embriaguez da palavra. Não tem veias ou vasos sangüíneos, nem coração ou rins.

É um armário portátil com inúmeras gavetas e nas gavetas há etiquetas escritas com tinta branca, marrom, vermelha, azul, escarlate, cor de açafrão, cor de malva, castanho-avermelhado, damasco, turquesa, ônix, Anjou, arenque, Corona, verdigris, gorgonzola...

Mudei a máquina de escrever para o aposento ao lado onde posso ver-me no espelho enquanto escrevo.

Tânia é como Irene. Espera cartas gordas. Mas existe outra Tânia, uma Tânia semelhante a uma grande semente, que espalha pólen por toda parte - ou, digamos, um pouco de Tolstói, uma cena de estábulo na qual o feto é desenterrado. Tânia é uma febre também - les voies urinaires. Café de la Liberté, Place des Vosses, gravatas brilhantes no Boulevard de Montparnasse, banheiros escuros. Porto Sec, cigarros Abdullah, sonata patética em adágio, amplificadores auditivos, sessões de anedotas, peitos castanho-avermelhados queimados, ligas pesadas, que horas são, faisões dourados recheados com castanhas, dedos de tafetá, crepúsculos vaporosos transformando-se em azinheiras, acromegalia, câncer e delírio, véus quentes, fichas de pôquer, tapetes de sangue e coxas macias. Tânia diz para que todos ouçam: "Eu o amo!" E, enquanto Bóris se queima com uísque, ela diz: "Sente-se aqui! ó Bóris... Rússia... que farei? Estou estourando!"

À noite, quando olho o cavanhaque de Bóris estendido sobre o travesseiro, fico histérico, ó Tânia, onde estão agora aquela sua boceta quente, aquelas ligas gordas e pesadas, aquelas coxas macias e arredondadas?



Em meu membro há um osso de quinze centímetros de comprimento. Tânia, alisarei todas as pregas de sua vulva, cheia de semente.

Mandá-la-ei de volta para seu Sylvester com a barriga doendo e o útero virado. Seu Sylvester! Sim, ele sabe acender um fogo, mas eu sei inflamar uma vagina. Enfiarei pregos quentes em você, Tânia. Deixarei seus ovários incandescentes. Seu Sylvester agora está um pouco ciumento? Ele sente alguma coisa, não sente? Sente os remanescentes de meu grande membro. Deixei as margens um pouco mais largas. Alisei as pregas. Depois de mim, você pode receber garanhões, touros, carneiros, cisnes e São Bernardos. Pode enfiar pelo reto sapos, morcegos, lagartos. Você pode defecar arpejos ou amarrar uma citara sobre o umbigo. Eu estou fedendo, Tânia, para que você fique fornicada.

E se tem medo de ser fornicada em público, eu fornicarei privativamente. Arrancarei alguns pêlos de sua vulva e os grudarei no queixo de Bóris. Morderei seu clitóris e cuspirei moedas de dois francos...

Céu de anil limpo de onde foram varridas as nuvens felpudas, árvores magras infinitamente estendidas, com seus galhos pretos a gesticular como um sonâmbulo. Arvores sombrias e espectrais, de troncos pálidos como cinza de charuto. Silêncio supremo e absolutamente europeu. Venezianas cerradas, lojas fechadas. Um brilho vermelho aqui e acolá para marcar encontro. Fachadas bruscas, quase proibitivas; imaculadas, não fossem as manchas de sombra que as árvores lançam. Passando pela Orangerie, lembrei-me de outra Paris, a Paris de Maugham, de Gauguin, a Paris de George Moore.

Penso naquele terrível espanhol que então espantava o mundo com seus saltos acrobáticos de um estilo para outro. Penso em Spengler e seus terríveis pronunciamentos e pergunto se o estilo, o estilo à grande maneira, morreu. Digo que meu espírito está ocupado com esses pensamentos, mas não é verdade; somente mais tarde, depois de ter atravessado o Sena, depois de ter deixado para trás o carnaval de luzes, é que permito a meu espírito brincar com essas idéias. No momento, não posso pensar em nada - exceto em que sou um ser senciente ferido pelo milagre destas águas que refletem um mundo esquecido. Ao longo de toda a extensão das margens, as árvores curvam-se pesadamente sobre o espelho embaçado; quando o vento se ergue e as enche de um murmúrio farfalhante, elas derramam algumas lágrimas e estremecem sobre a água rodopiante que passa. Estou sufocado por isto. Ninguém a quem possa comunicar sequer uma fração de meus sentimentos...

O mal de Irene é ter uma valise em lugar de vulva. Quer cartas gordas para enfiar na valise. Imensa, avec de choses inoüíes.

Agora, Llona tem uma boceta. Sei disso porque ela nos mandou alguns pêlos arrancados bem do fundo. Llona - uma égua selvagem cheirando prazer no vento. Em todo monte alto ela fez o papel de puta - e às vezes também em cabinas telefônicas e lavatórios. Ela comprou uma cama para o Rei Carol e um púcaro para sabão de barba com as iniciais dele. Deitava-se em Tottenham Court Road com o vestido levantado e fazia com os próprios dedos. Usava velas, velas romanas, e trincos de porta. Não havia na terra membro tão grande que lhe servisse... nenhum. Homens entravam nela e fraquejavam. Ela os queria com extensão, foguetes explosivos, óleo fervente feito de cera e creosoto. Cortaria o seu e o conservaria dentro dela, se você lhe desse permissão. Uma boceta como não se encontra em um milhão, Llona! Uma vagina de laboratório, sem papel de tornassol que pudesse tomar-lhe a cor. Era uma mentirosa também, essa Llona. Jamais comprou uma cama para o seu Rei Carol. Coroou-o com uma garrafa de uísque e sua língua estava cheia de chatos e amanhãs. Pobre Carol, dentro dela ele só poderia fraquejar e morrer. Uma chupada, e ele caiu para fora - qual morta lesma.

Cartas enormes e gordas, avec dês choses inouies. Uma valise sem alças. Um buraco sem chave. Ela tinha boca alemã, orelhas francesas, bunda russa. Vagina internacional.

Quando hasteava a bandeira, era vermelha em toda a extensão até a garganta. Você entrava no Boulevard Jules-Ferry e saía na Porte de Ia Villette. Você jogava seu pâncreas em carrinhos de mão - carrinhos de mão vermelhos, com duas rodas, naturalmente. Na confluência do Ourca e Marne, onde a água escorre através dos diques e pára como vidro sob as pontes. Llona lá jaz agora e o canal está cheio de vidro e de lascas; as mimosas choram e há sobre as vidraças um peido úmido e nevoento.

Uma vulva como não se encontra em um milhão, era Llona! Só vulva, e um traseiro de vidro no qual se podia ler a história da Idade Média.

É a caricatura de um homem o que Moldorf apresenta a princípio. Olhos de tireóide. Lábios Michelin. Voz como sopa de ervilha.

Por baixo do colete, leva uma pequena pêra. Todavia, olhando-o, a gente sempre vê o mesmo panorama: caixinha de rape enfeitada, cabo de marfim, peça de xadrez, leque, motivo de igreja. Já fermentou durante tanto tempo, que é amorfo. Fermento privado de suas vitaminas. Vaso sem a sua planta de borracha.

As fêmeas eram cobertas duas vezes no século IX e também durante a Renascença. Ele foi levado durante as grandes dispersões sob barrigas amarelas e brancas. Muito tempo antes do Êxodo, um tártaro cuspiu-lhe no sangue.

Seu dilema é o de um anão, com o olho pineal enxerga em silhueta projetada sobre tela de incomensurável tamanho. Sua voz, sincronizada com a sombra de uma cabeça de alfinete, intoxica-o. Ele ouve um rugido onde outros ouvem apenas um rangido.

Há sua mente. É um anfiteatro onde o ator tem atuação protéica. Moldorf, multiforme e impecável, vai através de seus papéis - palhaço, prestidigitador, contorcionista, padre, devasso, saltimbanco. O anfiteatro é excessivamente pequeno. Ele põe-lhe dinamite no interior. A platéia está entorpecida. Ele machuca-a.

Estou tentando inutilmente aproximar-me de Moldorf. É o mesmo que tentar aproximar-me de Deus, pois Moldorf é Deus - nunca foi outra coisa. Estou simplesmente registrando palavras. ( ... )


Henry Miller


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