sábado, 6 de fevereiro de 2010

Caligula, fragmento 01

(...)
Calígula entra furtivamente (...). Tem um ar alucinado, está sujo, os seus cabelos estão empapados de água e as suas pernas enlameadas. Leva várias vezes a mão à boca. Caminha para o espelho e detém-se, assim que apercebe nele a sua própria imagem. Balbucia palavras indistintas, depois vai-se sentar à direita, os braços caídos entre os joelhos separados. Helicon entra (...) Vendo Calígula, para (...) e observa-o em silêncio. Calígula volta-se e vê-o. Pausa.
HELICON, atravessando a cena
- Bom dia, Caius.
CALÍGULA, responde naturalmente
Bom dia, Helicon.
(Silêncio)
- Pareces fatigado?
- Andei muito.
- Sim, a tua ausência foi longa.
(Silêncio)
- Era difícil de encontrar.
- O quê?
- O que queria.
- E que querias tu?
- A Lua.
- O quê?
- Sim, eu queria a Lua.
- Ah!
(Silêncio. Helicon aproxima-se)
- Bem!... É uma das coisas que não tenho.
- Claro. E agora, está tudo em ordem?
- Não, não a posso ter.
- Esta aborrecido ?
- Sim, é por isso que estou cansado.
(Pausa)
- Helicon!
Diz, Caius.
- Pensas que estou doido.
- Bem sabes que nunca penso. Sou demasiado inteligente para isso.
- Já sei. Enfim! Não estou doido, parece-me mesmo que nunca fui tão razoável. Simplesmente, senti de repente necessidade do impossível. (Pausa) As coisas, tal como são, não me parecem satisfatórias.
- É a opinião geral.
- É a verdade. Até há pouco tempo, eu não a sabia. Agora, sei. (Sempre natural) Este mundo, tal como está feito, não é suportável. Tenho, portanto, necessidade da Lua, ou da felicidade, ou da imortalidade, de qualquer coisa de demente, talvez, mas que não seja deste mundo.
- É uma razão de peso. Mas, geralmente, não podemos conservá-la até ao fim.
CALÍGULA, levantando-se com a mesma simplicidade
- Que sabes tu disto? É porque nunca a conservamos até ao fim, que nada se alcança.
- Mas é possível que talvez baste continuarmos lógicos até ao fim.
(Olha Helicon)
CALÍGULA
Li o que estás a pensar. Quantas histórias por causa da morte de uma mulher! Não, não é isso. Suponho recordar-me, é verdade, de ter morrido há alguns dias uma mulher que amava. Mas o que é o amor? Pouca coisa. Juro-te que esta morte não quer dizer nada, apenas significa uma verdade que torna a Lua necessária. Uma verdade muito simples e muito clara, talvez um pouco estúpida, mas difícil de descobrir e pesada de suportar.
- E qual é, então, essa verdade, Caius?
CALÍGULA, lasso, num tom lento
- Os homens morrem e não são felizes.
HELICON, depois de uma pausa
- Ora, Caius, toda a gente passa bem sem essa verdade. Olha à tua volta. Não é ela que os impede de almoçar.
CALÍGULA, subitamente, numa explosão ( de ira).
Então, é porque tudo à minha volta é mentira, e eu, eu quero que se viva na verdade! E, justamente, tenho meios para os obrigar a viverem na verdade. Porque eu sei o que lhes falta, Helicon. Eles estão privados do conhecimento, porque lhes falta um professor que conheça aquilo que ensina.
- Não te ofendas com o que te vou dizer, Caius. Acho que, em primeiro lugar, devias ir repousar.
(...)

(continua)

Albert Camus- trecho da peça CALÍGULA

Um comentário:

Nemogeleia disse...

Sempre ardente este canto de desejo e de transpiração.