quinta-feira, 24 de abril de 2008

Transe






"Estamos acostumados a nos encarar como um grande corpo democrático; unido por laços comuns de sangue e língua, ligados indissoluvelmente por todos os meios de comunicação com a engenhosidade que o homem foi capaz de inventar; vestimos as mesmas roupas, comemos a mesma comida. Lemos os mesmos jornais, iguais em tudo exceto nome, peso e número; somos o povo mais coletivizado do mundo, erguendo barreiras a certos povos primitivos que consideramos atrasados em seu desenvolvimento. E no entanto – apesar de todas as aparências de nossa união, de nosso entrelaçamento, de que somos bons vizinhos, bem-humorados, altruístas, solidários, quase irmãos, somos apesar disso um povo solitário, um rebanho mórbido e enlouquecido, ziguezagueando num frenesi disciplinado, tentando esquecer que não somos aquilo que pensamos ser, que na verdade não somos unidos, não nos devotamos uns aos outros, não ouvimos, não somos nada, apenas dedos movidos a esmo por uma mão invisível num cálculo que não nos diz respeito. Subitamente, de vez em quando, alguém se acorda, alguém se liberta, por assim dizer, desta massa pegajosa e amorfa a que estamos grudados – a mixórdia que chamamos vida cotidiana e que não é vida, mas o equivalente a pairar em estado de transe sobre o grande fluxo da vida – e esta pessoa que, por não se submeter à regra geral, nos parece muito louca, acha-se investida de poderes estranhos e quase aterrorizadores.”



Henry Miller.

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