segunda-feira, 2 de junho de 2008

O mundo do sexo fragmento 03






"Não há duvídas de que o sexo constitui parte essencial da vida. É também um facto geralmente reconhecido que o papel do sexo, ou a sua importância na vida de cada um, varia segundo o indivíduo. O problema parece ser o seguinte: até que ponto pode a verdade da vida, naquilo que se relaciona com o comportamento sexual, ser utilizado na literatura? Talvez não resida sequer aqui o problema, mas antes na maneira como o sexo é apresentado. Em suma, talvez a questão pudesse ser assim formulada: Haverá uma maneira certa e uma maneira errada de tratar o sexo numa obra de arte? O que nos conduz imediatamente à questão seguinte: A maneira certa será a do moralista, a do censor, a do polícia? Ou, se preferirem, será o Estado, por intermédio dos seus legisladores, o árbitro em última instância sobre o que está certo e errado, o que é bom e mau, em matéria de arte?
Parece-me a mim que o pressuposto em que se baseiam as acções restritivas dos nossos guardiãos morais é simplesmente o de que o acesso à literatura proibida nos pode levar a comportar-se como animais. Mas pensar assim é insultar o reino animal. E, ao mesmo tempo, transformar a paixão, o maior atributo do homem, numa caricatura. (...) De todas as criaturas da terra, o homem é a única de comportamento imprevisível. Há em nós alguma coisa de toda a criação. Quando nos é negada a menor parcela de liberdade, ficamos espiritualmente limitados e mutilados. É a plena consciência da nossa natureza múltipla e a integração da miríade de elementos de que somos compostos que nos faz completos, que nos faz humanos. A religião faz de nós santos, ou apenas bons cidadãos; mas o que faz de nós homens, o que nos faz humanos até ao âmago é a liberdade. É uma palavra terrível, a liberdade, para aqueles que viveram toda a vida mentalmente algemados. (...)
Estou honestamente convencido de que o medo e o horror que o obsceno inspira nos dias de hoje, deriva mais da linguagem utilizada do que do pensamento. É como se lidássemos aqui com tabus primitivos. O facto de certas palavras, certas expressões, geralmente - mas nem sempre - associadas ao sexo, terem passado a ser consideradas "proibidas" é, no fundo, perfeitamente enganador. Aqueles a quem estes símbolos escritos chocam, desgostam, ferem ou horrorizam estão familiarizados com eles na língua falada. Todos ouvimos diariamente essas expressões "indecentes", "ordinárias", "feias", do berço à sepultura. Como e porquê, então, não nos tornámos imunes a elas? Que sortilégio possuem, de que não sabemos proteger-nos? Note-se que é, em particular, contra o seu uso na literatura que lutam os virtuosos. Mas porque há-de a literatura ser mais sacrossanta do que a fala? Não será a escrita uma outra forma de fala? Será que a juventude é corrompida - venerável termo de que constantemente nos servimos - apenas pela linguagem obscena? Os corruptores da juventude têm sido, ao longo dos tempos, objecto de tantas e tão variadas acusações que é difícil imaginar como seria possível ampliar a lista dos "males". E é sempre o próprio espírito da vida que constitui o alvo dessas acusações. A vida, porém, como tantas vezes tem sido demonstrado, não aceita ser restringida ou diminuída por códigos morais, por leis ou ditames de espécie alguma. O que rege a vida é o espírito, e o espírito do homem, divino por essência, permanece inviolável.


Henry Miller

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